[Alerta: texto caótico]
No meio da pandemia fiz aniversário de uma década trabalhando na empresa onde estou. Uma anomalia para os dias de hoje no mercado de TI? Talvez. Mas duas coisas certamente tornaram a experiência suportável. Uma delas foi a oportunidade de, mesmo estando na mesma empresa, ter trabalhado em diversos projetos diferentes ao longo de todo esse tempo, o que sem dúvidas foi um antídoto para a mesmice. A outra foi a construção de grandes amizades com uma vasta gama de pessoas incríveis com as quais pude ter conversas excelentes.
Uma coisa que pude observar ao longo dos anos nessa empresa foi que o processo de desenvolvimento de software foi sempre alvo de constantes mudanças e revoluções. A empresa chegou a ser certificada CMMI naquela época em que o mercado e o governo exigia esse selo para fechar grandes contratos. Logo, é de se imaginar que o processo de desenvolvimento era engessado e cheio de exigências. Mas a cada ano algo novo prometia ser a grande solução para alguma atividade, fosse a forma de escrever os requisitos, a prototipação, o teste, o versionamento do código, a documentação técnica. Com o passar do tempo entraram em cena elementos das metodologias ágeis, Scrum, Kanban, Design Thinking e outros. Se muitas foram as promessas de revoluções e tendências absorvidas, maior ainda foi a quantidade de ferramentas e aplicativos utilizados para implantá-las.
Eu sempre achei que, acima de qualquer processo de desenvolvimento, método ou ferramenta, um fator muito mais crítico para que as coisas funcionem é a vontade do time de fazer as coisas bem feitas, com capricho e responsabilidade. Pouco importa se estão sendo utilizados post-its coloridos, planilhas no Excel ou cronogramas no MS Project. Quem constrói o software são as pessoas, e não os meios que elas utilizam. Provavelmente ainda vão surgir muitas outras formas de desenvolver software, e todas elas irão colecionar uma gama de cases de sucesso que, para os mais ingênuos e exaltados, parecerá confirmar que essa é a melhor saída. Mas isso é uma percepção enviesada, sem a menor dúvida.
Dito isso, e tendo observado uma miríade de práticas adotadas e descartadas ao longo do tempo, penso que um processo de desenvolvimento, seja ele qual for, em qualquer tempo ou lugar, precisa minimamente promover rituais úteis e significativos que ajudem a canalizar o foco e a força de trabalho em torno de aspectos chave do que precisa ser construído ou mantido. Rituais. A reunião diária do Scrum, por exemplo, é um ritual que promove comunicação entre o time, o acompanhamento constante do cronograma e a identificação e solução rápida de impedimentos que poderiam culminar na concretização de certos riscos. Mas isso também pode ser feito de inúmeras outras formas criativas. Certamente vai agradar e funcionar melhor para uns que para outros. Mas usar algum ritual para cuidar de algum aspecto relevante num projeto vai sempre ser melhor que não usar nada e apenas confiar nas cabeças atarefadas e caóticas das pessoas e apostar na comunicação eficiente entre elas.
Isso me faz lembrar de algo inusitado. Certa vez, numa conversa incrível com um desses amigos que fiz na empresa, ele expôs um ponto de vista interessante sobre os signos do zodíaco e a astrologia. Para ele, mesmo que você não leve a sério o tema, conversar sobre o signo de alguém é um excelente ritual para se conectar com aquele indivíduo e mostrar-se atencioso e interessado. Não está em jogo aqui se astrologia é uma ciência e toda aquela discussão. Funcionando ou não, usar um papo sobre signos como ritual para obter conexão e promover empatia é, sem dúvidas, uma grande sacada.
Rituais têm esse poder. Se nos entregamos sem resistência, mesmo não dando crédito para seus meios, ele conduz a nossa mente, direciona o nosso foco e energia, promove o gatilho de determinados processos, raciocínios, sensações e sentimentos, sela compromissos, une pessoas, vira páginas, encerra capítulos. Eles podem ser potentes. Certas construções, desconstruções e viradas de chave me parecem muito difíceis de ocorrer sem um ritual marcante. Abrir mão deles pode ser uma grande prepotência, e isso ficou ainda mais evidente para mim durante a pandemia.
No isolamento, trabalhando em casa, levou algum tempo até eu conseguir ajustar os rituais que sinalizavam para minha mente uma separação simbólica entre trabalho e vida pessoal. Também precisei criar algumas estratégias para que os sábados e domingos tivessem sabor de fim de semana e não só mais dois dias no mesmo cenário. Sei de pessoas que terminaram a faculdade mas cuja breve cerimônia online não preencheu a lacuna deixada pela falta da formatura presencial. Sei ainda de pessoas jovens que passaram no vestibular e tiveram que estudar dois ou mais períodos iniciais da faculdade de forma completamente remota, sem aquele sabor único de passar a frequentar um campus universitário, sendo calouro.
Falando nisso, sabe o amigo que falou sobre a utilidade do papo sobre signos como ritual de conexão? Faleceu no início da pandemia. O velório foi restrito a poucos familiares, dadas as circunstâncias. E com isso não foi possível para mim viver o ritual da despedida como de costume. Até hoje me falta algum evento que ajude a fazer essa ficha cair. Para agravar, o trabalho remoto na pandemia me fez perder contato visual com muitos colegas, logo ficou difícil assimilar que mais um dos “sumidos” na verdade se foi para sempre. Então, mais do que nunca, digo com propriedade: rituais são úteis e muitas vezes necessários.